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"Não é o bastante ver que um jardim é bonito sem ter que acreditar também que há fadas escondidas nele?"
(Douglas Adams, 1952-2001)

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terça-feira, 12 de abril de 2011

Crônica Amazônida

Crônica publicada dia 16 de fevereiro de 1964, no jornal "A Província do Pará", por VERA MOGILKA, jornalista gaúcha, que retratou de modo interessante o Tacacá em diversos dos seus aspectos.



"O tacacá, toma-se? Bebe-se? Sorve-se? Saboreia-se? Não, o tacacá

deseja-se, de repente, como se deseja uma mulher, como se deseja retornar

ao amor da adolescência. O tacacá possui o toque agudo da saudade.. A

memória de seu sabor salgado e ardente assalta-nos sem aviso, em pleno

dia, em determinadas horas de distração. Naquele momento involuntário de

repouso quando, por fim ao cair da tarde sobre o rio, respiramos. Certo e

pequeno instante, dezenas de sugestões cruzam a mente. Todos os atos

gratuitos e cheios de graça da vida: uma criança correndo na grama,

braços em repouso e um regaço, mãe amamentando o filho, avião acendendo

e apagando as luzes na bruma da noite, navio singrando a baía, luar úmido

sobre igarapés - vontade de tomar tacacá. Desejo de tacacá. Porque, para

tomá-lo, é preciso, antes de tudo, um ritual.

É preciso que seja ao anoitecer. Ainda não de todo noite completa; ainda

não dia findo. Àquela hora semi-crepuscular, indecisa e feminina quando,

por fim, o céu se envolve de um azul-cinzento intenso ou aquela chuva

antes da saída da lua. É preciso que estejamos cansados, tão fatigados

que nada nos afigure mais necessá¬rio, naquele momento, do que tomar um

tacacá. Nem o bate-papo informal com o amigo. Nem o café na Central. Nem

o olhar à mulher que passa. Apenas, a pro¬cura, a única procura por um

tacacá, com pouca pimenta ou muita e bem quente.

Depois, é preciso que haja um banco. Tacacá toma-se sentado para que o

corpo repouse e possa se entregar completamente ao prazer de saboreá-lo.

Porque o tacacá é extremamente absorvente. Quando bem feito, o que ocorre

pouco. Pois fazê-lo e tomá-lo é uma arte.

É preciso, também, que a noite desponte ao chegarmos junto ao carrinho de

tacacá E comece a chover, levemente. Faça algo de frio, algo de úmido.

O que não é difícil em Belém. Depois, como estamos cansados e queremos

esquecer, esperamos. Uma paciência longa e calma, até que a dona do

tacacá termine por prepará-lo. De preferência que seja em Nazaré ou

olhando a Igreja da Trindade. É preciso que o tucupi seja leve,

amarelo-canário e novo. Que a goma bóie no líquido, espalhada por acaso

e se mostre apenas por alguns instantes; que não haja muita folha; que os

três ou quatro camarões sejam médios, nem grandes demais ou minúsculo e

somente uma parte deles apareça, a ligeira carne rósea a deixar-se

entrever, adivinhar-se na cuia olorosa. Depois, é preciso que haja sal e

pimenta de cheiro, mas não em demasia; o suficiente para nos queimar a

alma nos primeiros goles e reanimar o corpo; então renascemos para a noite

e a alegria novamente nos habita. O suficiente apenas para desvanecer seu

fervor após esses primeiros goles e tornar-se depois, uma presença

quente, já quase uma memória, na ponta da língua.

É preciso saber tomar o tacacá. Aos primeiros sorvos integralmente seu

calor, sua salinidade, seu gosto de mar quente, de arbusto e molusco que os

lábios experimen¬tam fugidiamente. É preciso que o jambú e os camarões

pousem lentamente no fundo da cuia e venham à boca, por si mesmos, sem o

auxílio dos dedos. É necessário que não sejamos interrompidos. Apenas

um aceno de cabeça aos conhecidos que passam. Um filtro mágico que se

bebe em silêncio e solidão. Somente a comunicação imperceptível com a

tacacazeira: feiticeira moderna numa terra onde as lendas ainda sobrevivem

em um mundo que se materializa inexoravelmente.

Chegados ao fim do tacacá, é preciso que o mesmo ainda se conserve morno,

assim como o fim de um amor. Jamais frio. Não existe nada pior do que um

tacacá frio. É como champanhe sem gelo. Neste momento tomaremos contacto

real com as grandes porções maternais de goma penetradas pelo tucupi e

pela amargura das folhas. Há sempre um gato gordíssimo perto do carro de

uma tacacazeira. Ele comerá, displicentemente, as cascas de camarão que

atirarmos ao chão. A cuia está vazia.

Agora, o mais importante: jamais repetir o tacacá, na mesma noite. A

segunda cuia nunca devolverá o sabor da primeira. O primeiro tacacá

daquele dia é único, autêntico, original, insubstituível como o gosto

do primeiro beijo. Como a primeira entrega de amor. Porque os tecidos de

nosso cansaço e de nossos desejos são satis¬feitos. Porque foi

necessário todo um dia infrutífero e todo um sol de toda uma chuva para

alcançá-la. Todo o equívoco das relações humanas, toda a falta de

solidariedade, de cortesia, de amizade e de comunicação com os outros. A

decep¬ção será fatal se arriscarmos um segundo, fiéis à gula. É

preciso permitir-se um resto de fome, um resto de desejo para o dia

seguinte, um resto de tristeza intransferível. Quando a baía abrir suas

margens de musgo para recolher as asas do dia; quando a lua surgir em seu

halo de chuva; quando chegarmos ao fim de nossas tarefas cotidianas,

então, novamente, sentiremos na ponta da língua a subtaneidade acre do

tucupi.

Paraenses, não vos espanteis com essa narrativa. O que, para vós é banal

e acessí¬vel desde a infância, para um sulista é um mistério, uma

surpresa e um inédito prazer. Muito comum é o visitante de outro Estado

que vem a Belém pela primeira vez e olha, desconfiado, aquele grupo de

pessoas ao redor de um carro de tacacá. Os movimentos das mãos da

tacacazeira lavando as cuias e servindo-as, Os utensílios tos¬cos,

rudimentares. O turista, cheio de suspeitas e de teorias antissépticas,

recusa-se a prová-la com argumentos de falta de higiene. Procura máquinas

a vapor que sequem automaticamente as cuias. Busca torneiras reluzentes de

onde jorre um tucupi sintético e insosso; e só encontra aquela magia

indígena, obscura, incons¬ciente perante a qual recua porque seu

coração não possui mais raízes fixas no mistério da natureza.. Porque

não é mais um homem natural.

Paraenses, vós desconheceis vossas próprias riquezas. Dia chegará a que

o gi¬gante levantará a grande cabeça de florestas de seu berço

esplêndido e o Brasil será redescoberto (não mais pelos portugueses). O

tacacá deixará de ser um usufruto particular e banal. E, em clima frio e

chuvoso como o de São Paulo será servido à noite, entre centenas de

sessões de cinemas super luxuosos. Milhares de tacacás industrializados,

produzidos por intrincados mecanismos de alumínio e aço. E o mistério

amazônico perder-se-á para sempre. Será recolhido ao coração de alguma

floresta ainda virgem, porém, impenetrável e densa. Lá onde os homens

não possam mais capturá-lo e bebê-lo, distraidamente, sem amor e sem

ritos. Lá onde, enfim, seu selvagem sabor repouse intacto e inacessível

no bojo do tempo."

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