Crônica publicada dia 16 de fevereiro de 1964, no jornal "A Província do Pará", por VERA MOGILKA, jornalista gaúcha, que retratou de modo interessante o Tacacá em diversos dos seus aspectos.
"O tacacá, toma-se? Bebe-se? Sorve-se? Saboreia-se? Não, o tacacá
deseja-se, de repente, como se deseja uma mulher, como se deseja retornar
ao amor da adolescência. O tacacá possui o toque agudo da saudade.. A
memória de seu sabor salgado e ardente assalta-nos sem aviso, em pleno
dia, em determinadas horas de distração. Naquele momento involuntário de
repouso quando, por fim ao cair da tarde sobre o rio, respiramos. Certo e
pequeno instante, dezenas de sugestões cruzam a mente. Todos os atos
gratuitos e cheios de graça da vida: uma criança correndo na grama,
braços em repouso e um regaço, mãe amamentando o filho, avião acendendo
e apagando as luzes na bruma da noite, navio singrando a baía, luar úmido
sobre igarapés - vontade de tomar tacacá. Desejo de tacacá. Porque, para
tomá-lo, é preciso, antes de tudo, um ritual.
É preciso que seja ao anoitecer. Ainda não de todo noite completa; ainda
não dia findo. Àquela hora semi-crepuscular, indecisa e feminina quando,
por fim, o céu se envolve de um azul-cinzento intenso ou aquela chuva
antes da saída da lua. É preciso que estejamos cansados, tão fatigados
que nada nos afigure mais necessá¬rio, naquele momento, do que tomar um
tacacá. Nem o bate-papo informal com o amigo. Nem o café na Central. Nem
o olhar à mulher que passa. Apenas, a pro¬cura, a única procura por um
tacacá, com pouca pimenta ou muita e bem quente.
Depois, é preciso que haja um banco. Tacacá toma-se sentado para que o
corpo repouse e possa se entregar completamente ao prazer de saboreá-lo.
Porque o tacacá é extremamente absorvente. Quando bem feito, o que ocorre
pouco. Pois fazê-lo e tomá-lo é uma arte.
É preciso, também, que a noite desponte ao chegarmos junto ao carrinho de
tacacá E comece a chover, levemente. Faça algo de frio, algo de úmido.
O que não é difícil em Belém. Depois, como estamos cansados e queremos
esquecer, esperamos. Uma paciência longa e calma, até que a dona do
tacacá termine por prepará-lo. De preferência que seja em Nazaré ou
olhando a Igreja da Trindade. É preciso que o tucupi seja leve,
amarelo-canário e novo. Que a goma bóie no líquido, espalhada por acaso
e se mostre apenas por alguns instantes; que não haja muita folha; que os
três ou quatro camarões sejam médios, nem grandes demais ou minúsculo e
somente uma parte deles apareça, a ligeira carne rósea a deixar-se
entrever, adivinhar-se na cuia olorosa. Depois, é preciso que haja sal e
pimenta de cheiro, mas não em demasia; o suficiente para nos queimar a
alma nos primeiros goles e reanimar o corpo; então renascemos para a noite
e a alegria novamente nos habita. O suficiente apenas para desvanecer seu
fervor após esses primeiros goles e tornar-se depois, uma presença
quente, já quase uma memória, na ponta da língua.
É preciso saber tomar o tacacá. Aos primeiros sorvos integralmente seu
calor, sua salinidade, seu gosto de mar quente, de arbusto e molusco que os
lábios experimen¬tam fugidiamente. É preciso que o jambú e os camarões
pousem lentamente no fundo da cuia e venham à boca, por si mesmos, sem o
auxílio dos dedos. É necessário que não sejamos interrompidos. Apenas
um aceno de cabeça aos conhecidos que passam. Um filtro mágico que se
bebe em silêncio e solidão. Somente a comunicação imperceptível com a
tacacazeira: feiticeira moderna numa terra onde as lendas ainda sobrevivem
em um mundo que se materializa inexoravelmente.
Chegados ao fim do tacacá, é preciso que o mesmo ainda se conserve morno,
assim como o fim de um amor. Jamais frio. Não existe nada pior do que um
tacacá frio. É como champanhe sem gelo. Neste momento tomaremos contacto
real com as grandes porções maternais de goma penetradas pelo tucupi e
pela amargura das folhas. Há sempre um gato gordíssimo perto do carro de
uma tacacazeira. Ele comerá, displicentemente, as cascas de camarão que
atirarmos ao chão. A cuia está vazia.
Agora, o mais importante: jamais repetir o tacacá, na mesma noite. A
segunda cuia nunca devolverá o sabor da primeira. O primeiro tacacá
daquele dia é único, autêntico, original, insubstituível como o gosto
do primeiro beijo. Como a primeira entrega de amor. Porque os tecidos de
nosso cansaço e de nossos desejos são satis¬feitos. Porque foi
necessário todo um dia infrutífero e todo um sol de toda uma chuva para
alcançá-la. Todo o equívoco das relações humanas, toda a falta de
solidariedade, de cortesia, de amizade e de comunicação com os outros. A
decep¬ção será fatal se arriscarmos um segundo, fiéis à gula. É
preciso permitir-se um resto de fome, um resto de desejo para o dia
seguinte, um resto de tristeza intransferível. Quando a baía abrir suas
margens de musgo para recolher as asas do dia; quando a lua surgir em seu
halo de chuva; quando chegarmos ao fim de nossas tarefas cotidianas,
então, novamente, sentiremos na ponta da língua a subtaneidade acre do
tucupi.
Paraenses, não vos espanteis com essa narrativa. O que, para vós é banal
e acessí¬vel desde a infância, para um sulista é um mistério, uma
surpresa e um inédito prazer. Muito comum é o visitante de outro Estado
que vem a Belém pela primeira vez e olha, desconfiado, aquele grupo de
pessoas ao redor de um carro de tacacá. Os movimentos das mãos da
tacacazeira lavando as cuias e servindo-as, Os utensílios tos¬cos,
rudimentares. O turista, cheio de suspeitas e de teorias antissépticas,
recusa-se a prová-la com argumentos de falta de higiene. Procura máquinas
a vapor que sequem automaticamente as cuias. Busca torneiras reluzentes de
onde jorre um tucupi sintético e insosso; e só encontra aquela magia
indígena, obscura, incons¬ciente perante a qual recua porque seu
coração não possui mais raízes fixas no mistério da natureza.. Porque
não é mais um homem natural.
Paraenses, vós desconheceis vossas próprias riquezas. Dia chegará a que
o gi¬gante levantará a grande cabeça de florestas de seu berço
esplêndido e o Brasil será redescoberto (não mais pelos portugueses). O
tacacá deixará de ser um usufruto particular e banal. E, em clima frio e
chuvoso como o de São Paulo será servido à noite, entre centenas de
sessões de cinemas super luxuosos. Milhares de tacacás industrializados,
produzidos por intrincados mecanismos de alumínio e aço. E o mistério
amazônico perder-se-á para sempre. Será recolhido ao coração de alguma
floresta ainda virgem, porém, impenetrável e densa. Lá onde os homens
não possam mais capturá-lo e bebê-lo, distraidamente, sem amor e sem
ritos. Lá onde, enfim, seu selvagem sabor repouse intacto e inacessível
no bojo do tempo."